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Aos 50 ( e poucos)

Aos 50 ( e poucos). Foto: Divulgação
 Foto: Divulgação

Vivo na­quele tempo no qual sabemos que, salvo raríssimas exceções, já tenho mais passado que futuro. Uma consequência dessa constatação é a vontade de desacelerar tudo, apreciar quadro a quadro cada coisa que aparece na minha frente, cada cheiro, som, gosto. É fato que o tempo no qual vivemos dá poucas chances para isso e, por isso, vivo no intenso dilema de produzir muito ou entregar-me aos prazeres inúteis. Entre o ócio e o negócio. Vou equilibrando-me entre os segundos rápidos e as horas lentas, entre os dias cheios e os meses largos, entre as decisões necessárias e as procrastinações prazerosas. E, ao pensar sobre essa dialética do existir/viver, vou percebendo como o tempo, esse algoz sem rosto, é nosso interlocutor mais presente, nosso mais caro fiel depositário do passado, nosso confidente dos mais loucos desejos de futuro.

Hannah Arendt, minha autora favorita, afirma que “todo fato tem causas, mas nem toda causa tem consequência”. De tantas coisas que ela disse e que me impressionam, essa frase sempre me põe em um alerta inexplicável. Isso porque sou professor de História e, ao longo das linhas de tempo que traço nos quadros verdes, há sempre uma certeza sobre o “isso ocorreu e então…”. Mas somente os fatos cristalizados na História é que são capazes de iluminar os seus passados. O fato, em si, não anuncia nada e não é o encaixe de nada que o antecede. Ou, não necessariamente. Somos o evento e suas contingências. Apesar de nosso desejo de maktub. Apesar de nossa vontade de vislumbre, de dizer: “não te falei?”
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Uma das coisas mais constrangedoras dos tempos atuais é a busca por eufemismos para esconder a idade das pessoas. O pior de todos, sem dúvida, é o que ouvimos nas farmácias e nos aeroportos: “as pessoas da melhor idade”. Como se fosse uma escolha ou um prêmio. Como se abrisse um corredor de jovens com os rostos corados e olhos úmidos aplaudindo as pessoas com suas idades ótimas, excelentes. Desde que, em tempos imemoriais, descobrimos que morreríamos inevitavelmente, cada dia que passa não nos leva para um lugar melhor, porque não pode haver “melhor” quando não há uma opção. O stali­nismo já devia ter nos ensinado isso há muito tempo.
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Aos 50, lembramos de mais coisas do que deveríamos para viver no tempo presente. Um tempo de notícias muito rápidas e fluidas. Mas nossas lembranças são insistentes! No início do ano, uma menina, angustiada, ao lado da coleguinha, perguntou-me: “professor, Tancredo morreu em 1984 ou 1985?” E lá veio tudo o que aconteceu naquele fatídico domingo, 21 de abril de 1985, dez e tanto da noite, quando o secretário de impren­sa (Antônio Britto) iniciou a nota dizendo: “Lamento informar…”. Mas aí a menina já estava longe. A “angústia” que ela desejava debelar era menos intensa. A história não era para ela, nem dela. E fiquei eu, ali, catando os restos dessa lembrança pelo corredor, antes que os demais alunos, desajeita­dos, pisassem sobre o olhar de dor do secretário de imprensa..
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Lendo Clément Rosset, reflito sobre o paradoxo de crer sem crer, viver sem uma eira nem beira racional, amar para ter certeza, sabendo da evanescência do amar. Aos 50, acreditamos – infantilmente – estarmos só uma pouco além da metade da vida. Mas – batam na madeira – nada impede que seja o último dia. Não há nada real que garanta esta conta, por mais que acreditemos nela. E então adiamos projetos para os 60. Viver tranqüilo, ok, depois dos 70. Mas, chegaremos lá? Não importa. Mesmo que não exista nada certo além do minuto agora. Só que não é nada fácil encarar essa evidência. Como lembra Clément: “se a incerteza é cruel, é que a necessidade de certeza é premente e a aparentemente inextirpável na maioria dos homens”.

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica

e professor no Curso Positivo

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